Essay Perspective
Drug Science Neuroscience Psychedelic Therapy


O Modelo Rebus

Compreender O Efeito Dos Psicadélicos Na Mente

Traduzido por Carla Soares, revisado por João Cardoso

“Talvez a psilocibina funcione, pelo menos, igualmente bem, é a minha previsão” – diz Carhart-Harris. “mas imagine a possibilidade de a psilocibina ser mais eficaz? Isso seria de facto…”. Interrompe brevemente. “isso seria algo significativo”. – Carhart-Harris num estudo comparativo de psilocibina e um antidepressivo.

O nosso conhecimento sobre a neurobiologia do cérebro tem evoluído rapidamente, desde o desenvolvimento de técnicas de imagiologia, tais como PET, MEG e, talvez mais consideravelmente, (f)MRI. Com base nas descobertas e ideias que estas técnicas têm gerado, a conceção do cérebro enquanto máquina de interpretação tem, gradualmente, evoluído para uma visão deste enquanto máquina de previsão. O enquadramento teórico subjacente a esta visão é designado de codificação preditiva1. Esta representa um importante paradigma através do qual o cérebro é, atualmente, compreendido e estudado, uma vez que é capaz de explicar muitas curiosidades acerca da perceção3, assim como aspetos da experiência e do comportamento.

Outro tópico de destaque na neurobiologia, especialmente relacionado com a psicoterapia e a psiquiatria, é a segunda onda de investigação com psicadélicos, conhecida por “renascimento psicadélico”4. Considerando a base científica crescente e o estatuto de “terapia de vanguarda” já atribuído, pela FDA, a modelos de tratamento específicos, nos Estados Unidos, parece ser apenas uma questão de tempo até a terapia psicadélica ser incorporada na caixa de ferramentas dos psicoterapeutas. No entanto, até recentemente, ninguém se tinha aventurado a integrar a codificação preditiva nos resultados impressionantes obtidos na investigação psicadélica. Faltava-nos, até então, um modelo teórico abrangente que explicasse os efeitos da terapia psicadélica no cérebro, além dos que ocorrem ao nível das estruturas e recetores.

Rebus e o cérebro anárquico

Robin Carhart-Harris E Karl Friston, dois importantes neurocientistas de Inglaterra, procuraram formular um modelo abrangente, integrando as suas próprias teorias do cérebro entrópico5 e do princípio da energia livre6 dentro do enquadramento da codificação preditiva1. Designaram este modelo de “RElaxed Beliefs Under pSychedelics and the anarchic brain”ou, na forma abreviada, REBUS. Nesta publicação, começar-se-á por delinear os principais fundamentos teóricos deste modelo e, posteriormente, interligar os conceitos para fornecer uma descrição do modelo REBUS que permita formular algumas considerações e pensamentos críticos.

Os blocos de construção

Codificação Preditiva Hierárquica

Foi referido, na introdução, que a nossa visão do cérebro tem vindo a mudar, nomeadamente, de “máquinas” de interpretação para “máquinas” de previsão. Os cientistas usam, frequentemente, analogias com máquinas – particularmente analogias com o computador – para visualizarem funções quando abordam diferentes partes do corpo. Os cérebros não são “máquinas” e, particularmente, comuns. No entanto, até para algo tão complexo como o cérebro, a analogia tem sentido heurístico: os neurónios, de forma simplificada, estão “on” ou “off”. As máquinas são, habitualmente, baseadas em matemática, portanto, como é que traduzimos a biologia do cérebro nesta linguagem abstrata? Por outras palavras, o que significa “metodologicamente” ver o cérebro como uma máquina de previsão?

Quanto mais aprendemos sobre o cérebro, mais percebemos que a nossa realidade percebida é construída a partir de estimativa e erro, com base nos inputs3. A codificação preditiva é exatamente isto: à medida que vamos envelhecendo, torna-se familiar a como o mundo funciona e adquirimos mais certezas relativas de que eventos específicos têm resultados específicos, os quais são consistentes ao longo do tempo. Após anos de “recolha de dados” e formação de modelos, o nosso cérebro gera, constantemente, modelos explicativos sobre inputs expectáveis, prevendo as causas e as origens das nossas experiências e ambientes e testando isto face aos inputs presentes. Os modelos de ordem superior são o que designamos de “visões do mundo” ou “crenças”, os quais são atualizados de forma bayesiana8, dependendo da medida da nossa surpresa quando algo inesperado ocorre.

Nos modelos matemáticos da atividade cerebral, a surpresa é concetualizada como um erro de previsão, como por exemplo, a diferença entre o que o cérebro previu que iria acontecer e a informação sensorial recebida. O aspeto hierárquico refere-se ao facto deste processo preditivo acontecer, simultaneamente, em múltiplos “níveis” da organização cerebral. Durante a formação e a testagem dos modelos, nos diferentes níveis corticais, as crenças ou previsões de nível superior (ou top-down9) podem influenciar as perceções bottom-up9, explicando ou racionalizando parte da surpresa experienciada (também designada de erro de previsão).

É importante realçar que os modelos existentes têm um certo “peso”, o qual poderia ser reformulado em função da sua força ou certeza. Quanto maior o pesa da crença, maior a probabilidade de que ela seja capaz de explicar qualquer surpresa. Como exemplo, muitas pessoas estão familiarizadas com o efeito da “cadeira com roupa”: no quarto escuro, por uma fração de segundo, a cadeira pode assemelhar-se a uma pessoa parada na divisão. Após um momento, essa perceção volta, instantaneamente, a ser apenas uma cadeira com roupa. Esta mudança instantânea é a codificação preditiva hierárquica em funcionamento: o córtex de ordem superior transmite ao sistema percetual que ele deve estar errado. O erro de previsão de entrada é explicado, atualizando a perceção com o conhecimento existente do que realmente está no quarto.

O Princípio Da Energia Livre

Friston expandiu a teoria da codificação preditiva, colocando a hipótese de que os organismos procuram reduzir a quantidade de incerteza ou surpresa, designada agora de “energia livre”, que experienciam ao longo da vida6. Uma vez que um organismo biológico pode mudar o input que recebe agindo no seu ambiente, é possível que evite estados nos quais experienciaria tal incerteza ou surpresa. Esta incerteza forçaria o organismo a mudar os seus modelos sobre o mundo, e ele prefere evitá-lo pois atualizar os modelos é uma tarefa dispendiosa e incómoda em termos energéticos. Quando aplicado aos seres humanos, estes podem limitar-se a um ambiente que seja mais congruente com as crenças que têm sobre o mundo, evitando, desta forma, grandes surpresas (ou, remetendo para a codificação preditiva, erros de previsão). É de referir que esta limitação pode ser externa, mas também interna, como por exemplo, mudar a narrativa.

A Hipótese Do Cérebro Entrópico

Carhart-Harris, com base em dados da sua investigação com psilocibina, propôs uma teoria acerca de como os diferentes estados de consciência se podem relacionar uns com os outros. A sua ideia era a de que a qualidade da experiência subjetiva experienciada – ou riqueza da informação – está diretamente relacionada com a medida de entropia no cérebro5. De forma simplificada, a entropia significa a medida de atividade aleatória ou desordem. Aplicada ao cérebro, é de mencionar que esta mostra tanto a atividade síncrona, como a atividade aleatória ou assíncrona. Seguindo esta noção base de sincronia ou assincronia, a medida de entropia cerebral é o grau em que a atividade cerebral é imprevisível, como por exemplo, quanta atividade aleatória ou espontânea ocorre no cérebro.

Em resumo, a hipótese entrópica do cérebro de Carhart-Harris, afirma que estados de consciência rígidos, tais como a depressão ou perturbação obsessiva-compulsiva, os quais são definidos, parcialmente, por ciclos de pensamento rígidos e ruminações, encontram-se na extremidade inferior do espectro de entropia do cérebro. Os estados de consciência excitados, tais como psicose precoce ou estados psicadélicos, encontram-se na extremidade superior do espectro. Como exemplo, pensar numa estratégia para lidar com um problema novo requer algum pensamento criativo e habilidade para pensar fora do quadro habitual de referência. Na ausência de entropia no cérebro, seria difícil ter um pensamento original para além do que já existe para resolver problemas novos. No entanto, do outro lado do espectro, no máximo de entropia cerebral, não existiria coesão no pensamento, tornando impossível agir, construtivamente, em todas as ideias criativas e bizarras que flutuam na mente.

A hipótese de Carhart-Harris afirma que a medida de entropia, no cérebro humano adulto, decresce de um ponto conhecido como criticalidade11 para subcriticalidade. A criticalidade pode ser vista como o “balanço perfeito” entre ordem e desordem no cérebro, no qual o processamento de informação tem eficiência máxima – exatamente o ponto entre os dois exemplos dados em cima. Através de dados obtidos nos ensaios clínicos com psilocibina, Carhart-Harris demonstrou que os psicadélicos têm o potencial de conduzir o cérebro da subcriticalidade para um estado mais próximo da criticalidade5, 11, 12.

Recap

Em suma, a codificação preditiva hierárquica explica como é que as crenças de ordem superior conseguem, dependendo do seu “peso”, modelar ou constranger a interpretação dos dados sensoriais. Além disso, de acordo com o princípio da energia livre, os organismos procuram minimizar a incerteza subjetiva, agindo no seu ambiente para diminuir ainda mais a energia livre (ou exposição à incerteza), ao longo da sua vida. Por último, a hipótese do cérebro entrópico de Carhart-Harris, postula que a entropia neuronal está diretamente relacionada com a “riqueza” da experiência subjetiva e que os psicadélicos aumentam a entropia, conduzindo o cérebro proximamente à criticalidade.

Construindo com blocos

Portanto, como é que tudo isto se interliga? Carhart-Harris e Friston propuseram que um mecanismo neural chave, ao qual a terapia psicadélica deve o seu efeito terapêutico, é o enfraquecimento das crenças de ordem superior4. Aumentando a entropia e, desta forma, estimulando o pensamento criativo, os padrões arraigados de pensamento enfraquecem e o cérebro é capaz de comunicar mais livremente dentro de si mesmo, deixando mais informação “fluir para cima”. Desta forma, o princípio da energia livre é, temporariamente, interrompido, “soltando” as pessoas das suas visões do mundo eficientes energeticamente. Assim, esta visão do mundo pode ser repensada para encontrar um novo ponto ótimo, a partir do qual operar, em vez de se limitar a um modelo preditivo excessivamente rígido.

Imaginemos que uma pessoa experiencia um evento violento traumático, durante a adolescência. O choque é tão profundo que a crença “as pessoas são inerentemente boas” é destruída. Consequentemente, a nova crença “as pessoas habitualmente têm más intenções” torna-se um princípio orientador. Os anos passam e esta crença vai fortalecendo-se mais pois não é explicada nenhuma evidência contrária e outra grande mudança na visão do mundo seria demasiado exigente. Com frequência suficiente, esta crença é também confirmada. Aos 45 anos, a pessoa apercebe-se que é difícil aproximar-se dos outros e construir relações, uma vez que, a desconfiança se arraigou tanto que bloqueia este processo. Ao perceber isto, a pessoa procura trabalhá-lo, mas uma vez que está enraizado num evento de infância e em anos de “prática”, isto mostra-se difícil.

Este exemplo ilustra vários conceitos acima mencionados. O modelo da codificação preditiva hierárquica descreve a atualização repentina de crenças, após eventos traumáticos. Durante os anos subsequentes, o princípio da energia livre encontra-se em ação, removendo a incerteza sobre quem é “bom” e quem é “mau” para empregar uma estratégia de eficiência energética (de curto prazo), nomeadamente categorizando todos como “maus”. Ao longo do tempo – voltando à codificação preditiva – esta crença torna-se mais forte e começa até a explicar coisas positivas que as pessoas fazem. E agora?

Agora, a terapia psicadélica entra em jogo. Através da sua ação proposta nos sistemas de crenças de ordem superior e rigidez geral da mente, a pessoa é capaz de “dar um passo atrás” e observar esta crença e os seus fundamentos, a partir de uma perspetiva distanciada: de um estado alterado de consciência. No seu estado enfraquecido, a crença pode ser atualizada ou “reavaliada”. É como se os dedos das mãos de um pai super protetor fossem soltos pois os seus medos foram amenizados. A crença foi relaxada sob os psicadélicos, concedendo a oportunidade de outras crenças serem consideradas e outras informações percetivas entrarem na consciência, sem a compressão e controlo estritos da crença debilitante.

Os relatos de pacientes podem fornecer bons exemplos reais. Depois do tratamento com psilocibina, durante um dos estudos de Carhart-Harris, uma pessoa disse12:

“Senti-me muito mais leve, como se algo tivesse sido libertado. Foi uma purga emocional, como o peso e a ansiedade e a depressão tivessem sido levantados.”

É de reparar a referência a “libertação” e, coincidentemente, a “peso”. Quando visto à luz do REBUS, isto corresponde bem ao enfraquecimento do peso de uma crença limitadora.

Uma revisão crítica

Intuitivamente, o modelo parece certamente apelativo. No entanto, é ainda recente e precisará de resistir ao teste da ciência empírica. Uso intencionalmente o termo “intuitivamente”, uma vez que, o próprio modelo envolve uma argumentação um pouco mais neurobiológica, enquanto as ligações entre os construtos biológicos e a mente são, em certo grau, especulativas. Os argumentos têm uma ligeira tendência de se apoiar em como “fariam sentido”, em vez de evidências científicas concretas. Além disso, como o REBUS é estabelecido como um modelo global e unificado da função cerebral e estados mentais, a afirmação de que ele explica todas as mudanças e fenómenos que ocorrem na personalidade e na psiquiatria é bastante ousada – e excessivamente geral. Isto é algo a ser apreciado já que o modelo é o primeiro do seu tipo e destina-se a servir um propósito científico específico que convida a tentativas de refutação.

O modelo reconhece o facto de que a ligação entre mudanças cognitivas / heurísticas de larga escala (como por exemplo, mudanças na personalidade e em visões políticas), devem ter algum fundamento biológico, mas que este ainda não foi elucidado. Este facto talvez mostre que o modelo é um ponto de partida e não um modelo exaustivo para o que ocorre, exatamente, no cérebro relacionado com a mente, tanto de uma perspetiva experiencial como simultaneamente neurobiológica.

Resta saber o mérito que o modelo terá na orientação da investigação e da prática. É, certamente, estimulante ver as principais teorias neurobiológicas serem utilizadas para explicar os possíveis mecanismos da terapia psicadélica. Uma quantidade crescente de evidências científicas sugere que os psicadélicos podem ser instrumentos eficazes que, quando aplicados adequadamente, num ambiente terapêutico controlado, podem ajudar a tratar várias psicopatologias e facilitar o desenvolvimento pessoal. Um modelo unificador que pode estruturar e informar o percurso da investigação científica é, portanto, um recurso valioso no atual clima académico.

Sendo o REBUS o primeiro destes modelos unificadores e, tendo apenas alguns meses, a reação de outros centros de investigação neurobiológica é algo a aguardar. Como é que um modelo teórico fará progredir ou apoiará os psicoterapeutas que precisem de trabalhar com indivíduos que sofrem de problemas muito distintos (e não apenas gerais)? Este modelo possui valor em termos de auto compreensão e autoconhecimento? Se aplicarmos este enquadramento à sociedade mais ampla, quais são as implicações?

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Referências

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10. Osborne, S. (2018). Entropy as More than Chaos in the Brain: Expanding Field, Expanding Minds. MIND Foundation Blog.

11. Tagliazucchi, E., Carhart-Harris, R., Leech, R., Nutt, D., Chialvo, D.R. (2014). Enhanced Repertoire of Brain Dynamical States During the Psychedelic Experience. Human Brain Mapping 35, 5442-5456.

12. Roseman, L., Demetriou, L., Wall, M.B., Nutt, D.J., Carhart-Harris, R.L. (2018). Increased Amygdala Responses to Emotional Faces After Psilocybin for Treatment-Resistant Depression. Neuropharmacology 142, 263-269.


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