Como as substâncias psicadélicas podem conduzir a uma transformação duradoura
Traduzido por João Cardoso, editado por Tomas Teodoro
Este post foi o vencedor do Prémio de Publicação no Blogue uniMIND 2020.
“... podia discernir claramente (as minhas relações) quase como se fosse pela primeira vez. Tive uma perceção nova das coisas. Era quase como se de repente uma película tivesse caído dos meus olhos, e podia ver as coisas como elas realmente são.”1
Temos assistido ao chamado Renascimento do Psicadelismo, com cada vez mais estudos a demostrarem os efeitos positivos das substâncias psicadélicas no tratamento de uma vasta gama de perturbações do foro mental, incluindo a depressão,2 perturbações de ansiedade,3 perturbação de stress pós-traumático (PSPT),4 e as dependências.5 Apenas algumas doses destes compostos – e por vezes mesmo apenas uma – podem causar benefícios psicológicos duradouros. Têm sido empreendidos grandes esforços no intuito de compreender os mecanismos por detrás dos seus efeitos terapêuticos. Pesquisas recentes sugerem que a eficácia das substâncias psicadélicas depende da intensidade de certos fenómenos subjetivos.3,6 As substâncias psicadélicas geram usualmente experiências profundas através das quais as pessoas aprimoram o conhecimento da sua vida mental e social. Neste artigo, analisarei a forma como as substâncias psicadélicas podem promover o insight psicológico, e argumentarei, recorrendo às atuais provas científicas, que estes insights podem conduzir a uma transfiguração psicológica duradoura.
Embora a psicologia careça de uma definição universalmente aceite para insight,7 o termo tem vindo a ser facilmente usado no campo da investigação das substâncias psicadélicas, muitas vezes sem grande clarificação. Insight significa geralmente ter uma revelação súbita e intuitiva – frequentemente referida como um momento Aha! ou Eureka! – o qual permite ao indivíduo “resolver um problema ou experienciar um dado fenómeno de modo diferente”.7,8 Pode também indiciar um nível geral de autoconhecimento ou autoconsciência, particularmente quando usado no contexto de perturbações psicóticas.9 Ter um insight é tido como uma epifania psicanalítica, ou um tipo de conhecimento experiencial, através do qual se obtém uma nova noção das emoções, comportamentos, crenças, memórias e relações.7,10 Enquanto alguns teóricos argumentam que o insight é sinónimo de mudança,10 para outros, o facto de se ter um insight apenas e só não é o suficiente para causar mudança.11
Frequentemente, os sujeitos em estudos com substâncias psicadélicas relatam passar subitamente a ver as coisas de uma nova perspetiva. Tornam-se capazes de compreender com uma clareza sem precedentes os próprios padrões de pensamento e comportamento, assim como os das suas relações:
“Estava a pensar nas relações que tinha com outras pessoas e a pensar que as podia discernir claramente quase como se fosse pela primeira vez. Tive uma perceção nova das coisas. Era quase como se de repente uma película tivesse caído dos meus olhos, e podia ver as coisas como elas realmente são”.1
“É quase como se quando se tomam as cápsulas, fosse como levar consigo a bordo o seu próprio psicoterapeuta.”1
Outras pessoas têm a sensação de ter adquirido conhecimentos mais profundos acerca de questões filosóficas12 como o significado da vida, a natureza da consciência, ou a sua relação com a natureza:
“Antes gostava da natureza, agora sinto-me parte dela. Antes olhava para ela como se fosse uma coisa, como uma televisão ou uma pintura. Faz-se parte dela, não há separação ou distinção, é-se isso.”1
Com frequência as pessoas consideram as suas sessões psicadélicas como uma das experiências mais esclarecedoras das suas vidas.13 Além disso, vários estudos com substâncias psicadélicas revelaram melhorias da satisfação geral com a vida, bem como alterações duradouras nas atitudes e comportamentos, e uma postura mais positiva.14,15,16 Há cada vez mais provas de que a obtenção de insight psicológico desempenha um papel crucial de intermediação nestes efeitos positivos.
Em estudos recentes, o insight induzido por substâncias psicadélicas está fortemente associado a reduções da depressão e ansiedade.14,17,18 Os insights psicadélicos têm também revelado vantagens para as pessoas que sofrem de alcoolismo: quanto mais esclarecidas psicologicamente foram as suas experiências com substâncias psicadélicas, melhor se previu a redução do consumo de álcool.13 Foram obtidos resultados semelhantes em relação ao tabagismo.19
Além destes, um outro estudo indicou que os insights gerados por substâncias psicadélicas podem favorecer a alteração da personalidade em pessoas que sofrem de depressão. O grau de discernimento sentido durante uma sessão com psilocibina foi associado a um incremento na extroversão e a uma redução na neurose. Isto significa que os inquiridos se mostraram mais propensos a tornarem-se mais extrovertidos, entusiasmados e faladores, bem como menos suscetíveis de serem temperamentais e sentirem preocupação, raiva, culpa e solidão.20
Há consenso na psicoterapia acerca dos insights espontâneos poderem desencadear uma mudança terapêutica. Contudo, é menos claro porque motivo os insights ocorrem de forma consistente durante as experiências psicadélicas, de que forma estes poderão conduzir a uma mudança duradoura e como isto se manifesta no cérebro. Substâncias psicadélicas clássicas como o LSD ou a psilocibina geram os seus efeitos psicoativos pela estimulação dos recetores de serotonina 2A (5HT2ARs) no cérebro. Estes recetores estão largamente presentes no córtex, especialmente nas regiões superiores da hierarquia funcional do cérebro, tais como a rede de modo padrão (RMP).
Pensa-se que a RMP está envolvida no ato de pensar acerca de si próprio e acerca dos outros, em recordar o passado, e em planear o futuro.21 Para além disto, está fortemente envolvida nas narrativas que fazemos a nós próprios e nas nossas convicções acerca do mundo. Uma RMP altamente ativa, particularmente evidente em distúrbios psiquiátricos como a depressão, pode impedir-nos de reconsiderar as nossas convicções ao suprimir informação que se encontra adormecida em níveis inferiores do cérebro (p. ex.: o sistema límbico, envolvido no processamento das emoções).22
Uma teoria recente dos neurocientistas britânicos Robin L. Carhart-Harris e Karl J. Friston alega que, ao estimular os recetores 5HT2AR, as substâncias psicadélicas interferem nas regiões superiores do cérebro como a RMP, conduzindo a um estado cerebral mais moldável e menos inibido. A certeza nas suposições e crenças profundamente enraizadas relaxa, tornando o cérebro mais recetivo à revisão dessas crenças através da introdução de dados sensoriais e através de informação vinda de níveis inferiores do cérebro.22 Por outras palavras, as substâncias psicadélicas promovem uma mudança acentuada da conectividade do cérebro, o que o torna mais recetivo à informação reprimida. Como tal, o indivíduo pode aceder a uma nova perspetiva, a qual é normalmente experienciada como revelação súbita.
O estado de espírito com o qual o indivíduo parte para uma sessão psicadélica é igualmente crucial para o surgimento de uma revelação súbita. Nos estudos com substâncias psicadélicas, as pessoas são habitualmente aconselhadas a suster o seu pensamento analítico e a iniciar a sua experiência com um estado de espírito aberto e curioso. Assim, o mantra “confiar, deixar ir, ser aberto” tem sido comumente usado na terapia com substâncias psicadélicas.23 É mais provável que os insights emerjam quando as pessoas partem para a sua sessão psicadélica com a intenção de se renderem ao momento presente e estarem disponíveis para acolher tudo o que a experiência traga.
Apesar disto, mesmo as experiências mais esclarecedoras sob o efeito de substâncias psicadélicas podem ser incapazes de produzir mudanças duradouras. Por conseguinte, é crucial compreender as circunstâncias sob as quais tais experiências conduzem a benefícios permanentes. Os psicólogos Miller e C’Debaca descreveram um fenómeno, a que chamaram mudança quântica, no qual certas experiências levam a uma súbita transformação nas emoções, valores, comportamento e relações das pessoas.24 A maioria destas mudanças quânticas partilham características semelhantes: (1) surgem repentina e imprevisivelmente, (2) caracterizam-se por emoções positivas intensas, (3) concedem ao indivíduo o conhecimento de que algo bastante invulgar sucedeu, e (4) levam a uma mudança duradoura. À semelhança das experiências induzidas por substâncias psicadélicas, as alterações quânticas provocam amiúde revelações profundas e geram efeitos de tipo místico, tais como o sentimento de um outro transcendental, um sentimento de unidade com toda a humanidade e natureza, e “um súbito conhecimento de uma nova verdade “25.
A sua grande parecença com as alterações quânticas pode ajudar a explicar a capacidade das experiências psicadélicas para mudar profundamente a vida das pessoas. Quando as perceções psicológicas vêm acompanhadas de emoções intensas ou de efeitos extraordinários do tipo místico, poderão conter muito mais potencial de transformação do que qualquer experiência isolada. E escusado será dizer que qualquer perceção deve ser devidamente integrada, o que implica refletir ativamente sobre a própria experiência e explorar o modo de a colocar em prática para que se incite a uma mudança duradoura. Este processo de atuar repetidamente sobre as próprias perceções pode requerer a ajuda de outros, tais como familiares, amigos ou terapeutas. Infelizmente, este aspeto é frequentemente negligenciado, deixando por explorar muito do potencial transformador das substâncias psicadélicas.
Tendo em conta as experiências profundas e místicas que as pessoas podem ter sob o efeito de substâncias psicadélicas, não é surpreendente que após uma dessas experiências desenvolvam por vezes crenças sobrenaturais e irracionais,12 especialmente quando as substâncias são consumidas repetidamente em circunstâncias desreguladas.26 Uma vez que o bem-estar baseado em falsas crenças parece bastante indesejável e – poder-se-á também afirmar – menos estável, devemos assegurar-nos de que estes insights sejam baseados em realidade. Daí que se coloque a questão: quão verídicos são os insights induzidos por substâncias psicadélicas?
É altamente suscetível de discussão que as experiências psicadélicas possam aproximar as pessoas da compreensão da natureza do universo, ou oferecer provas de algo como a consciência universal (como por vezes afirmam os adeptos das substâncias psicadélicas). No entanto, mesmo imperfeitas, as intuições epistemologicamente questionáveis podem ser benéficas no sentido em que podem ajudar o indivíduo a mudar a sua perspetiva, resultando na melhoria do funcionamento cognitivo, emocional e social.27 De um modo mais geral, estas ocorrências podem simplesmente aumentar a abertura à experiência e fomentar a curiosidade, levando a um maior envolvimento com o mundo e, assim, a mais oportunidades de adquirir conhecimento.27
Embora algumas pessoas possam obter benefícios psicológicos de insights ilusórios, estes muitas vezes comprometem o entendimento das pessoas acerca do seu ambiente, e a sua capacidade de criar uma representação fiável do mundo. Geralmente, um modelo mental que se empenhe numa aproximação razoável à realidade tende a ser mais passível de confiança e, portanto, mais propício à saúde mental. Por conseguinte, é aconselhável dar sentido às próprias perceções com uma mente aberta, porém cética e desconfiada do pensamento mágico e da autoilusão. Neste sentido, na sua obra “The Philosophy of Psychedelic Tranformation” (A Filosofia da Transformação Psicadélica), o filósofo Christopher E. R. Letheby argumenta extensamente em favor da compatibilização das experiências profundas do tipo místico com uma visão naturalista do mundo na ausência de deuses, almas, entidades alienígenas, ou realidades sobrenaturais.28
As substâncias psicadélicas têm o potencial para desencadear súbitas transformações psicológicas, as quais a psicoterapia convencional alcançaria apenas ao longo de anos, se de todo. Não é só através da aquisição de novos conhecimentos, mas sobretudo através da reorganização das suas mentes que as pessoas podem melhorar drasticamente a sua condição mental. As substâncias psicadélicas podem causar precisamente isto. Contribuem para o florescimento da intuição e mudança de perspetiva, interferindo nas redes cerebrais envolvidas na representação de si próprio. Ao fazê-lo, podem tornar-se um tratamento para padrões patológicos de pensamento e comportamentos disfuncionais, se devidamente implementadas e exercidas. Mais investigação irá mostrar como otimizar a experiência psicadélica (incluindo preparação, dose, disposição e integração) de uma forma a fomentar a clarividência psicológica no indivíduo. Além disso, a nossa sociedade necessita de espaços seguros onde a experiência psicadélica possa ser cuidadosamente preparada e integrada, e onde estes compostos possam ser utilizados de forma responsável e legal para promover o autoconhecimento e permitir que as pessoas mudem para melhor.
Este post no blog foi o vencedor do prémio de post no blogue uniMIND, no qual membros de grupos uniMIND de toda a Europa submetem ensaios ao Blog da MIND. Jannis é um membro do grupo uniMIND em Berlim.
Isenção de responsabilidade: este post do blog foi traduzido e editado por voluntários. Os contribuidores não representam a MIND Foundation. Se notar algum erro ou inconsistência, por favor informe-nos – agradecemos qualquer sugestão que possa melhorar o nosso trabalho (mail to: [email protected]). Se deseja ajudar no processo de tradução, entre em contacto connosco para se juntar ao MIND Blog Translation Group!
Watts, R., Day, C., Krzanowski, J., Nutt, D. & Carhart-Harris, R. Patients’ accounts of increased “connectedness” and “acceptance” after psilocybin for treatment-resistant depression.Journal of Humanistic Psychology57, 520–564 (2017).
Carhart-Harris, R. L.et al.Psilocybin with psychological support for treatment-resistant depression: six-month follow-up.Psychopharmacology (Berl)235, 399–408 (2018).
Griffiths, R. R.et al.Psilocybin produces substantial and sustained decreases in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: A randomized double-blind trial.J Psychopharmacol30, 1181–1197 (2016).
Mithoefer, M. C., Wagner, M. T., Mithoefer, A. T., Jerome, L. & Doblin, R. The safety and efficacy of ±3,4-methylenedioxymethamphetamine-assisted psychotherapy in subjects with chronic, treatment-resistant posttraumatic stress disorder: the first randomized controlled pilot study.J Psychopharmacol25, 439–452 (2011).
Johnson, M. W., Garcia-Romeu, A., Cosimano, M. P. & Griffiths, R. R. Pilot Study of the 5-HT2AR Agonist Psilocybin in the Treatment of Tobacco Addiction.J Psychopharmacol28, 983–992 (2014).
Roseman, L., Nutt, D. J. & Carhart-Harris, R. L. Quality of Acute Psychedelic Experience Predicts Therapeutic Efficacy of Psilocybin for Treatment-Resistant Depression.Front. Pharmacol.8, (2018).
Levitt, H. M. The Transformational Experience of Insight: A Life-Changing Event. J Constructivist Psychology (2010).
Weisberg, R. W. Toward an integrated theory of insight in problem solving.Thinking & Reasoning21, 5–39 (2015).
Fennig, S., Naisberg-Fennig, S. & Craig, T. J. Assessment of insight in psychotic disorders.Isr J Psychiatry Relat Sci33, 175–187 (1996).
Miller, J. M. Knowing and not knowing. Some thoughts about insight.Psychoanal Study Child55, 220–237 (2000).
Nonfiction Book Review: Talk Is Not Enough: How Psychotherapy Really Works by Willard Gaylin, Author, M. D. Willard Gaylin, Author Little Brown and Company ISBN 978-0-316-30308-8.
Shanon, B.The Antipodes of the Mind: Charting the Phenomenology of the Ayahuasca Experience. (Oxford University Press, 2002).
Garcia-Romeu, A.et al.Cessation and reduction in alcohol consumption and misuse after psychedelic use.J Psychopharmacol33, 1088–1101 (2019).
Griffiths, R. R., Richards, W. A., McCann, U. & Jesse, R. Psilocybin can occasion mystical-type experiences having substantial and sustained personal meaning and spiritual significance.Psychopharmacology (Berl.)187, 268–283; discussion 284-292 (2006).
Ross, S.et al.Rapid and sustained symptom reduction following psilocybin treatment for anxiety and depression in patients with life-threatening cancer: a randomized controlled trial.J. Psychopharmacol. (Oxford)30, 1165–1180 (2016).
Schmid, Y. & Liechti, M. E. Long-lasting subjective effects of LSD in normal subjects.Psychopharmacology (Berl)235, 535–545 (2018).
Carbonaro, T. M., Johnson, M. W., Hurwitz, E. & Griffiths, R. R. Double-blind comparison of the two hallucinogens psilocybin and dextromethorphan: similarities and differences in subjective experiences.Psychopharmacology (Berl.)235, 521–534 (2018).
Davis, A. K., Barrett, F. S. & Griffiths, R. R. Psychological flexibility mediates the relations between acute psychedelic effects and subjective decreases in depression and anxiety.Journal of Contextual Behavioral Science15, 39–45 (2020).
Garcia-Romeu, A., Griffiths, R. R. & Johnson, M. W. Psilocybin-occasioned Mystical Experiences in the Treatment of Tobacco Addiction.Curr Drug Abuse Rev7, 157–164 (2015).
Erritzoe, D.et al.Effects of psilocybin therapy on personality structure.Acta Psychiatr Scand138, 368–378 (2018).
Andrews-Hanna, J. R. The Brain’s Default Network and its Adaptive Role in Internal Mentation.Neuroscientist18, 251–270 (2012).
Carhart-Harris, R. L. & Friston, K. J. REBUS and the Anarchic Brain: Toward a Unified Model of the Brain Action of Psychedelics.Pharmacol Rev71, 316–344 (2019).
Richards, W. A.Sacred Knowledge: Psychedelics and Religious Experiences. (Columbia University Press, 2016). doi:10.7312/rich17406.
Miller, W. R., C’Debaca, J. & Baca, J. C.Quantum Change: When Epiphanies and Sudden Insights Transform Ordinary Lives. (Guilford Pubn, 2001).
Miller, W. R. The Phenomenon of Quantum Change.Journal of Clinical Psychology60, 453–460 (2004).
Johnson, M. W., Richards, W. A. & Griffiths, R. R. Human hallucinogen research: guidelines for safety:Journal of Psychopharmacology(2008) doi:10.1177/0269881108093587.
Letheby, C. The epistemic innocence of psychedelic states.Consciousness and Cognition39, 28–37 (2016).
Letheby, C. The Philosophy of Psychedelic Transformation.Journal of Consciousness Studies22, 170–193 (2015).