Interview
Biological Sciences Drug Science Neuroscience Psychedelic Therapy Medicine & Psychiatry


Para Além Da Aliança Terapêutica

Como É Que O MDMA E Os Psicadélicos Clássicos Modificam A Aprendizagem Social Uma Entrevista Com Gül Dölen

Traduzido por Carla Soares, editado por Joana Miranda

Editado por Lucca Jaeckel & Clara Schüler

“EM VEZ DE BENEFICIAREM DA PSICOTERAPIA ASSISTIDA POR MDMA E, EM SEGUIDA, ENVIÁ-LOS PARA CASA COM UM DIÁRIO E ALGUNS PENSAMENTOS FELIZES, O QUE REALMENTE DEVEMOS DIZER É QUE A JANELA TERAPÊUTICA PERMANECE POR SEMANAS, SE NÃO MESES, APÓS OS EFEITOS PSICADÉLICOS AGUDOS DESAPARECEREM”.

Na Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins, Departamento de Neurociências, a neurobiologista e membro do conselho científico consultivo da MIND, Gül Dölen, MD-PhD, estuda os mecanismos através dos quais as substâncias psicadélicas funcionam no tratamento de doenças do cérebro social, tais como Perturbação do Stress Pós-Traumático (PSPT), adição e formas severas de autismo. Dölen falou-me sobre o seu artigo1, publicado na revista Nature em 2019, o qual mostra que o MDMA reabre um “período social crítico” no cérebro dos ratos no qual estes ficam sensíveis a aprender o valor de recompensa dos comportamentos sociais – mas apenas se os ratos estiverem num contexto social. Com base nesta investigação, Dölen e os seus colegas acreditam que são requeridas duas coisas para que o MDMA, e potencialmente todos os psicadélicos, sejam terapêuticos no contexto das doenças do cérebro social: 1) a reabertura do período crítico e 2) o contexto social adequado para que a memória seja reformulada. Esta visão não desafia apenas os atuais modelos de terapias psicadélicas, como também sugere um caminho a seguir para os tratamentos psiquiátricos em geral.

 PREPARANDO O CÉREBRO PARA OS PSICADÉLICOS

 Saga Briggs (SB): Com base nos seus estudos com animais, de que forma pensa que as substâncias psicadélicas podem funcionar em humanos no tratamento de doenças do cérebro social como PSPT?

Gül Dölen (GD): Quando pensamos no que é que acontece quando alguém tem PSPT, o que está em questão é que, durante a sua infância ou adolescência [durante o período de sensibilidade máxima ao ambiente social ou “período social crítico”], estiveram num ambiente social e algo negativo lhes aconteceu e, nesse momento, a sua resposta foi muito adaptativa. Protegeram-se a si mesmos colocando paredes, protegendo-se do que quer que estivesse a causar aquele dano.

Mas depois o período crítico termina e, com o tempo, essa resposta adaptativa começa a tornar-se cada vez menos adaptativa até que atingem a idade adulta e são incapazes de estabelecer relações íntimas. São incapazes de manter um emprego. Têm uma visão de si mesmos muito negativa em termos de autoestima, de que não são merecedores de amor e de estar no mundo. A memória torna-se uma visão do mundo extremamente bem enraizada, e é difícil demovê-la. Então a ideia é que o que estamos a fazer com o MDMA é voltar atrás e permitir que eles reescrevam essa memória de uma forma adaptativa, agora que o evento traumático foi removido do seu ambiente.

E, portanto, eu penso que no fim do paper1 da Nature, terminamos com “Bem, [as substâncias psicadélicas] podem estar apenas a tornar a aliança terapêutica mais forte”, mas com base em outros dados mais recentes e pensando mais sobre isso, eu acho que é mais do que apenas a aliança terapêutica. Trata-se de tornar essas memórias disponíveis para modificação.

SB: Como é que esta modificação da memória funciona exatamente?

GD: A maneira como agora falo sobre isso é o que chamo de “modificação do engrama de estado aberto”. Portanto, coloca-se o cérebro num estado aberto, através do MDMA, onde se vai estar novamente sensível ao ambiente social, e então – seja através de terapia ou processamento das próprias memórias ou a ver fotos ou escrever – o que se faz é trazer de volta o engrama da memória que é relevante para o trauma, neste estado em que se está recetivo a manipulá-lo, a tornar essas memórias maleáveis e a reescrevê-las para responder à realidade do mundo atual.

SB: E acha que isso tem de acontecer num ambiente social, por si só? Eu penso que no seu artigo da Nature mencionou que esse fenómeno só aconteceu quando os ratos estavam com outros ratos. Mas é claro que muitas pessoas têm experiências transformadoras ao tomarem psicadélicos por si próprios.

GD: Na verdade, eu penso que provavelmente uma das descobertas mais surpreendentes e profundas do artigo é a dependência do contexto, pois todas as outras explicações que têm sido colocadas relativamente à forma como estas substâncias psicadélicas funcionam, literalmente por todos os outros, sempre negligenciaram o facto de que essas experiências são muito modificadas pelo set e setting, são dependentes do contexto. Sabe, não é como se as pessoas com PSPT tomassem MDMA, fossem a festas e voltassem curadas. Sim, pode-se ter experiências profundas que são importantes em termos terapêuticos fora do consultório médico. Mas não vai conseguir fazê-lo se passar o tempo todo só em festas. Nesse caso, não se está a envolver com essas memórias [traumáticas].

IR ALÉM DOS EFEITOS AGUDOS

SB: Este é o mesmo mecanismo que acredita que pode funcionar no tratamento de formas severas de autismo?

GB: Antes de mergulharmos nos ensaios com seres humanos no autismo, queremos obter um pouco mais de informações sobre o autismo. Uma das coisas que aconteceu quando eu era estudante universitária é que o meu orientador Mark Bear e eu apresentamos esta teoria de que se diminuirmos a sinalização de um recetor específico de glutamato [mGluR5], isto equilibra a síntese exagerada de proteína  observada no autismo2. Esta teoria gerou muito entusiasmo e excitação e parecia ser validada pela investigação com animais que foi replicada por outros vinte e oito laboratórios. Depois desses estudos pré-clínicos com animais obterem tanta visibilidade, as grandes empresas farmacêuticas entraram em ação e pensaram que iriam curar o autismo com esta modificação do mGluR. Mas depois os ensaios clínicos falharam e foi uma grande decepção para todo o campo da neurociência translacional. Foi devastador pois todos nós pensamos que iria funcionar, mas não aconteceu. Então, ao tentar pensar acerca do porquê de não ter funcionado, existiam diferentes explicações possíveis . Mas eu penso que cada um dos estudos com animais foi realizado ou a partir da génese [com  manipulação genética para que eles nascessem com o gene modificado] ou eles receberam [a modificação] no início do seu desenvolvimento e esta foi dada cronicamente para as suas vidas inteiras. Enquanto que, nos testes em humanos, os pacientes mais jovens recrutados tinham dezasseis anos, mas a maioria deles eram adultos – bem depois da idade em que o seu período social crítico terminaria.

Portanto, a ideia que eu adoraria seguir é, bem, talvez a razão pela qual os ensaios clínicos falharam é porque a terapia mGluR estava certa, mas o período crítico estava fechado. O que realmente precisamos de fazer é dar um modulador mGluR, mais um psicadélico, para reabrir o período crítico. Assim, na condição de um período social crítico aberto, o desequilíbrio bioquímico seria corrigido e teríamos eficácia terapêutica.

SB: A modificação do engrama de estado aberto seria um tratamento duradouro para essas doenças? Quanto tempo durou o efeito para os ratos no seu estudo?

GD: Sim, na verdade eu penso que é a segunda coisa mais importante que encontramos neste estudo: todos os outros estudos que tentam descobrir esses mecanismos focam-se realmente nos efeitos agudos das substâncias. E o que nós descobrimos é que após o MDMA, o período crítico começa a abrir seis horas após a dose aguda. Depois atinge o pico às 40 horas e permanece ativo por pelo menos duas semanas, e então após um mês desce novamente. Portanto, só para colocar isto em perspetiva, duas semanas num ratinho são provavelmente mais de dois meses num humano.

Eu penso que isto também informa a maneira como podemos querer fazer os ensaios clínicos. Em vez de beneficiarem  da psicoterapia assistida por MDMA e, em seguida, enviá-los para casa com um diário e alguns pensamentos felizes, o que realmente devemos dizer é que a janela terapêutica permanece por semanas, se não meses, após os efeitos psicadélicos agudos desaparecerem. Precisamos de abordar esse período de tempo como valioso e realmente fazer com que haja muito foco intensivo e atividade terapêutica a acontecer durante essa janela, em vez de apenas desencadeá-la e depois deixá-los ficar por conta própria.

ONDE A TERAPIA ENCONTRA A GRANDE INDÚSTRIA FARMACÊUTICA

SB: De que outras formas podem estes resultados influenciar os modelos de tratamento?

GB: Isso remete para um debate que está a acontecer atualmente na terapia psicadélica. As indústrias farmacêuticas estão realmente apegadas a essa ideia de que se conseguirmos compreender os mecanismos destas drogas, a nível farmacológico, então eventualmente conseguimos projetar uma droga que ative qualquer que seja o mecanismo que esteja a curar a depressão ou a PSPT ou o que for, e então podemos eliminar todos esses efeitos psicadélicos colaterais desagradáveis. A viagem psicadélica pode acabar, certo? Este é o sonho deles.

E depois há do outro lado os psicólogos que dizem “não, isso não pode estar certo porque nós sabemos que conseguimos alcançar esses efeitos psicadélicos terapêuticos mesmo sem a substância, conquanto que possamos atingir este lugar místico. Podemos fazê-lo com a meditação, podemos fazê-lo com um pouco de trabalho de respiração, etc. E além disso, a robustez dessa experiência mística correlaciona-se com a robustez dos efeitos terapêuticos.”

Portanto, são dois lados do debate. E eu penso que o nosso resultado sobre a dependência que os psicadélicos têm face ao setting para abrir o período crítico oferece uma espécie de meio termo entre estas duas visões. O que nos diz é que a ligação da droga ao recetor abre um “período crítico” – esse é o efeito farmacológico que as empresas farmacêuticas têm procurado tão furiosamente. A nossa hipótese é que esse é o mecanismo. Qualquer medicamento ou manipulação que possa reabrir o período crítico tem potencial para aquele efeito terapêutico. Porém, acima de tudo, a dependência do setting significa, para mim, que o que a viagem psicadélica faz e o que o setting faz é preparar o cérebro para que a memória certa e o circuito certo sejam reativados ou disponibilizados para modificação neste estado aberto.

É um meio termo entre estas duas visões diferentes acerca da forma como [a substância] está a funcionar. E eu acho que isso realmente nos diz, sistematicamente quando estamos a avaliar uma potencial hipótese ou um novo composto ou uma nova forma de fazer esses ensaios clínicos, precisamos de considerar esta questão “estamos a abrir o período crítico e estamos efetivamente a acionar o engrama relevante?”. Porque se não estamos a fazer nenhuma destas coisas, não vai funcionar.

 DIREÇÕES FUTURAS

Resta saber se a reabertura do período crítico se tornará um objetivo deliberado das terapias psicadélicas, especialmente quando outros laboratórios começam a reivindicar eficácia terapêutica com versões sintéticas3 de substâncias psicadélicas sem a componente da viagem psicadélica. Independentemente disso, parece haver um potencial terapêutico significativo e desconhecido a ser explorado nos meses seguintes ao tratamento psicadélico padrão. No caso da PSPT, esta janela pode ser inestimável. No caso do autismo, que não é universalmente considerado uma doença, a conversa é mais complexa. Embora a noção de “cura” do autismo tenha vindo a ser e deva ser desafiada, por exemplo, questionando a ética de mudar substancialmente aspetos nucleares da personalidade do indivíduo, o trabalho de Dölen representa uma contribuição fundamental para a área daqueles que possam procurar tratamento.

 

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REFERÊNCIAS

1.  N  ardou, R., Lewis, E., Rothhaas, R., Xu, R., Yang, A., Boyden, E. and Dölen, G., 2019. Oxytocin-dependent reopening of a social reward learning critical period with MDMA. Nature, 569(7754), pp.116-120.

2. Dölen, G. and Bear, M., 2009. Fragile x syndrome and autism: from disease model to therapeutic targets. Journal of Neurodevelopmental Disorders, 1(2), pp.133-140.

3. Cameron LP, Tombari RJ, Lu J, Pell AJ, Hurley ZQ, Ehinger Y, et al. A non-hallucinogenic psychedelic analogue with therapeutic potential. Nature. 2020;589(7842):474–9.


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