Perspective
Consciousness Research Neuroscience


Dissolver a dissolução do ego

Repensando o papel da rede de modo padrão nas substâncias psicadélicas

Traduzido por João Cardoso, editado por Laura Inês Pinto Ramos

Editado por Clara Schüler & Lucca Jaeckel

O público frequentemente deixa-se levar por uma história cativante antes mesmo de os resultados científicos estarem disponíveis. Isso ocorre tanto para a narrativa do ego quanto para a narrativa do DMN.

IPassaram-se três anos desde que a publicação de How to Change Your Mind de Michael Pollan trouxe a ciência psicadélica de volta ao conhecimento geral. O livro popularizou a noção de que a Rede de Modo Padrão (DMN, do inglês Default Mode Network), a rede cerebral que se torna ativa quando as pessoas não estão envolvidas numa tarefa e deixam a sua mente vaguear, é a sede do ego ou do self e que as substâncias psicadélicas atuam principalmente “desligando-a”. No seu livro, Pollan escreve:

“Parece que quando a atividade na rede de modo padrão cai a pique, o ego dissipa-se temporariamente e as fronteiras habituais que experienciamos entre o self e o mundo, sujeito e objeto, se dissolvem.”1

Desde a publicação do livro, os meios de comunicação social têm sido inundados com relatos que enquadram a morte do ego através do silenciamento da DMN como o traço distintivo da experiência psicadélica.2 Este enquadramento tem sido tão amplamente aceite como conhecimento comum entre a população com interesse no psicadelismo que retiros psicadélicos de renome incorporam agora afirmações como as que se seguem nas suas declarações de objetivos: “[Nós] aproveitamos ao máximo os efeitos da psilocibina sobre a DMN ao ajudar os participantes a explorar a libertação do controlo do ego num ambiente seguro, confortável e orientado.”3 Por contraste, a maioria dos cientistas psicadélicos, caso pressionados, explicarão que o laço entre o ego e a DMN é algo semelhante a um mito, ou no mínimo uma narrativa exacerbada.

“Penso que muitos investigadores estarão talvez a bater à porta errada no que diz respeito à dissolução do ego”, diz o Dr. David Yaden, investigador de pós-doutoramento do Johns Hopkins Center for Psychedelic and Consciousness Research, numa entrevista de 2020 com o psicólogo humanista Dr. Scott Barry Kaufman. “O enfoque sobre a DMN é algo que provavelmente não continuará a ser muito útil em termos de compreensão científica da razão pela qual estas experiências são tão benéficas.”4

Portanto, como chegámos a este ponto, juntamente com Pollan e outros? E será que importa sequer que estejamos aqui? Qual é o mal, se é que há algum, em acreditar que as substâncias psicadélicas desligam a DMN e dissolvem o ego que alegadamente vive por lá?

Dissolução do ego e substâncias psicadélicas

Transmitida das tradições muçulmana e budista sufista, a expressão morte do ego foi adotada por Timothy Leary nos anos 60 para descrever a primeira fase, ou “bardo” (estado tibetano de existência, intermédio ou transitório, entre a morte e o renascimento), dos estados alterados de consciência induzidos por drogas no seu livro The Psychedelic Experience: “transcendência completa – para além das palavras, para além do espaço-tempo, para além do self“.5 Leary descreve as fases subsequentes como “períodos de alucinações” e finalmente “um renascimento para a realidade rotineira”.5 Pela mesma altura, embora apenas indiretamente relacionado com as substâncias psicadélicas, o conceito de “morte psíquica” foi introduzido por Carl Jung6 e o mitólogo comparativo Joseph Campbell descreveu a Viagem do Herói como um processo de despojamento de si próprio de modo a regressar-se mudado à realidade quotidiana.7 Nos anos 70, o psicólogo transpessoal Stanislav Grof ofereceu a perspetiva de que a morte do ego deveria ser o objetivo principal da terapia psicadélica.8 Durante a interrupção da pesquisa psicadélica, o autor espiritual e orador Eckhart Tolle continuou a popularizar a morte do ego, equiparando-a à liberdade face ao sofrimento.

Sessenta anos após ter sido introduzida no Ocidente, a morte do ego tornou-se algo como um desporto de competição em certos círculos, com fóruns psicadélicos digitais dedicados a comparar níveis da sua experiência.2 A morte do ego está bem documentada como um fenómeno anedótico durante os estados psicadélicos e não-psicadélicos, porém será que a atual investigação neurocientífica reflete a nossa interpretação deste fenómeno como uma “perda do self” e será que está realmente localizada numa única rede cerebral?

A dissolução do ego e a Rede de Modo Padrão

O artigo do Prof. Dr. Robin Carhart-Harris de 2014 sobre o Cérebro Entrópico (eis aqui o nosso artigo de blogue acerca disto) foi o primeiro a defender que a experiência de estados psicadélicos surge de uma desintegração da DMN.9 Além disso, o grupo de investigação de Carhart-Harris no Imperial College London publicou o primeiro grande estudo vinculando a diminuição da conectividade da DMN sob o efeito de LSD à dissolução do ego.10 Desde então, muitos outros investigadores da área psicadélica se juntaram à investigação destas ligações.11, 12

Num estudo de 2020 sobre a dissolução do ego após uso de psilocibina, Natasha Mason et al. da Universidade de Maastricht descobriram adicionalmente que as concentrações de glutamato no córtex pré-frontal medial e no hipocampo, duas regiões cerebrais pertencentes à DMN, estavam correlacionadas com experiências positivas e negativas de morte do ego, respectivamente.12 No entanto, ao interpretar estes resultados, afirmam que “estas áreas foram escolhidas com base em evidências anatómicas, funcionais e comportamentais anteriores, implicando-as como potenciais regiões chave na modulação da experiência psicadélica”. Por outras palavras, regiões fora da DMN não foram consideradas especificamente porque a narrativa de investigação corrente não as incluiu – uma abordagem que pode favorecer a dedução em detrimento da descoberta.

Poderá a ligação entre a dissolução do ego, as substâncias psicadélicas e a DMN ser realmente fortificada por tais estudos? Quando examinada mais de perto, parece haver algumas lacunas que merecem ser preenchidas.

Em primeiro lugar, apesar das reduções na conectividade serem razoavelmente congruentes em toda a literatura de investigação, estas reduções não são frequentemente “seletivas” em relação à DMN. Isto significa que também ocorrem noutras redes do cérebro, incluindo a Rede de Saliência, que desempenha um papel bem definido na auto-consciencialização.13 Os tamanhos do efeito nestas outras redes são frequentemente maiores do que na DMN. Além disso, uma vez que medir a atividade da DMN é essencialmente medir o vaguear da mente, os investigadores enfrentam frequentemente o problema de não terem dados suficientes dos quais possam extrair padrões significativos.

“É uma questão de pequenas amostras, onde analisamos 10-15 indivíduos”, diz o Dr. Manoj Doss, neuropsicofarmacologista do Johns Hopkins Center for Psychedelic and Consciousness Research, referindo-se ao âmbito limitado dos estudos psicadélicos existentes em geral. “O que é ainda pior é que se trata de uma cognição sem constrangimentos. Se eu estiver a usar substâncias psicadélicas, haverá um punhado de coisas que [o meu cérebro] poderá estar a fazer. [Enquanto estiver no aparelho de ressonância magnética,] poderei estar paranoico, a pensar no que é que o investigador quer de mim, que conseguem ler a minha mente ou algo parecido com a ressonância magnética funcional. Há também situações em que se vai realmente desfrutar da experiência e prestar atenção às informações visuais recebidas. Ou seremos deveras empáticos ao pensar na nossa mãe ou em qualquer outra situação. Portanto, se alguma subamostra de sujeitos tiver uma maior propensão para fazer qualquer uma dessas coisas, isso vai resultar em descobertas completamente diferentes. Assim, até mesmo obter uma linha de base ‘O que é que as substâncias psicadélicas provocam no estado de repouso [imagem por ressonância magnética funcional]?’ é um empreendimento um pouco malfadado.”

Acresce que o alvo principal das substâncias psicadélicas – os recetores 5-HT2A – se expressa em todo o cérebro, não apenas nas regiões da DMN. “É possível conceber que a DMN contribua para os efeitos (subjetivos) induzidos pelas substâncias psicadélicas”, diz a Dra. Katrin Preller, investigadora de substâncias psicadélicas da Universidade de Zurique e membro do Conselho Científico Consultivo da MIND, “mas muito provavelmente apenas em interação com outras áreas e redes cerebrais.”

Com todo um cérebro a explorar e muitas regiões aparentemente impactadas do mesmo modo, parece haver o risco de perpetuar uma narrativa assente numa base instável, quanto mais não seja porque encoraja um enfoque míope sobre a DMN e retira a atenção de outras possibilidades. “Infelizmente, o livro de Pollan já saiu”, diz Doss, não de forma a denegrir o seu trabalho, mas para lamentar o facto de que o público se deixa frequentemente levar por uma história cativante ainda antes de os resultados científicos estarem disponíveis. Isto é verdade tanto para a narrativa do ego como para a narrativa da DMN. “‘Dissolução do ego’ é um termo muito amplo que capta bastantes experiências relacionadas com o estado psicadélico, desde mudanças mais centradas na perceção corporal até ao sentimento completo de unidade ou perda do self“, diz Preller. “Para que seja útil na investigação e/ou em contexto clínico, precisamos de uma definição melhor e mais precisa do que queremos dizer exatamente quando falamos de dissolução do ego.”

Para aprofundar a questão, considere que algumas substâncias que diminuem a conectividade da DMN na realidade aumentam o egoísmo, o que se opõe diretamente ao aumento da empatia relatada sob o efeito de substâncias psicadélicas: “A anfetamina pode tornar as pessoas mais egoístas, no entanto diminui a conectividade da DMN”, diz Doss. “O álcool diminui a conectividade da DMN e pode atuar da mesma forma. A ideia da DMN ser estritamente o self e de que a redução da DMN está envolvida na dissolução do ego… Não sei se isso é útil.”

As histórias que contamos a nós próprios

Se não for um cientista, porém, qual é o perigo de acreditar que o seu ego repousa no trono da DMN, presidindo à sua existência até ser usurpado por substâncias psicadélicas? Se uma experiência percecionada como perda do self se traduz em resultados benéficos, por que razão será tão importante questionarmos esta narrativa? Em primeiro lugar, esta história conduz-nos a duas crenças falsas: que o self é uma entidade singular no cérebro e que a DMN tem uma função singular. Ambas as afirmações não poderiam estar mais longe da verdade.

“Um aspeto muito importante de nós próprios é que viemos daqui [apontando para o seu corpo], não do canto da sala”, diz Doss. “Outro aspeto do que somos é o que fazemos. E isto estará mais envolvido com as redes motoras e as redes de controlo executivo. Portanto, restringir o self à DMN… Não sei se isso será proveitoso. É por isso que muitos de nós na neurociência cognitiva tentamos restringir estas redes e regiões cerebrais a funções de desempenho em certas tarefas. Algo que então limita as inferências que se podem fazer em relação a que aspetos específicos do self está envolvida a DMN, em vez de apenas o ‘self’ global.”

Talvez mais importante, acredita-se agora amplamente que a DMN gere o pensamento social na mesma medida, ou até mais, do que o pensamento auto-referencial.13 Kevin Tan, doutorando no Social Cognitive Neuroscience Lab da UCLA, demonstra numa pré-publicação submetida à revista Nature que pensar acerca de si mesmo e pensar acerca dos outros seleciona um caminho neurocognitivo comum envolvendo a DMN.14 “Penso que todas as principais redes cerebrais estão envolvidas na cognição social, mas a DMN desempenha o papel mais crucial”, diz Tan. “A DMN sustenta cálculos que realmente efetuam a cognição social abstrata, em vez de apenas fornecer antecedentes para tal.”

Se ignoramos esta relação, ignoramos algumas provas convincentes de que a auto-perceção e a perceção social estão interligadas, e tal descoberta poderá mudar a forma como abordamos os cuidados de saúde mental que vão além das substâncias psicadélicas. O que perdemos com a compartimentação das redes cerebrais não é apenas o funcionamento elegante e matizado do cérebro em prol da compreensão da sua mecânica; é também o significado filosófico, comportamental e clínico de descobrir quais os processos cognitivos que se sobrepõem uns aos outros.

“Sabemos que é um pecado neste momento chamar a amígdala de o ‘centro das emoções’”, acrescenta Doss. “Contudo, ainda nos referimos a estas redes pela forma como foram inicialmente descritas, de uma forma fácil para que todos compreendamos. Até os cientistas gostam de histórias.”

Desligar ou conectar?

Só porque uma teoria se torna um paradigma, não significa que essa teoria esteja representada com precisão. Quando examinado de perto, o próprio trabalho de Carhart-Harris não identifica de forma conclusiva a DMN como a protagonista da história. Por exemplo, num artigo de 2016 sobre dissolução do ego e LSD, o próprio autor e os seus colegas propõem que provavelmente seja a maior conectividade entre redes, mais do que o aumento ou diminuição da atividade dentro de uma determinada rede, que leva à experiência de dissolução do ego:

“O LSD incrementou a integração global ao aumentar o nível de comunicação entre redes cerebrais normalmente distintas. O aumento da conectividade global observado sob a influência de LSD correlacionou-se com relatos subjetivos de ‘dissolução do ego’. Os resultados atuais fornecem a primeira prova de que o LSD expande seletivamente a conectividade global no cérebro, pondo em causa a organização modular e ‘rich-club do cérebro e, simultaneamente, as fronteiras percetivas entre o self e o seu ambiente.”15

Vale a pena notar que as experiências de dissolução do ego muitas vezes andam de mãos dadas com sentimentos de ligação e fusão, talvez espelhando o que acontece no cérebro. Ainda assim, alguns poderão alegar que é necessário um ego distinto para experimentar uma perda do ego. Estas são questões fundamentais da consciência que não poderão ser agrupadas ordenadamente numa única narrativa. Mais livros como os de Pollan chegarão e passarão à medida que a ciência psicadélica avança, porém, de modo a manterem-se apoiados nessa ciência, é importante deixar espaço em branco para a escrita da história completa.

Isenção de responsabilidade: este post do blog foi traduzido e editado por voluntários. Os contribuidores não representam a MIND Foundation. Se notar algum erro ou inconsistência, por favor informe-nos – agradecemos qualquer sugestão que possa melhorar o nosso trabalho (mail to: [email protected]). Se deseja ajudar no processo de tradução, entre em contacto connosco para se juntar ao. MIND Blog Translation Group!

Referências:

  1. Pollan, Michael. How to Change Your Mind: the New Science of Psychedelics. Page 305. Penguin Books, 2019.

  2. https://www.vice.com/en/article/j5zqwp/competitive-psychedelic-users-are-chasing-ego-death-and-losing-their-sense-of-self

  3. https://www.synthesisretreat.com/psilocybin-and-the-default-mode-network

  4. https://scottbarrykaufman.com/podcast/the-science-of-self-transcendent-experiences-with-david-yaden/

  5. Lattin, Don. 2019. Timothy Leary’s legacy and the rebirth of psychedelic research. Harvard Library Bulletin 28 (1), Spring 2017:65-74.

  6. Stanislav Grof,History of LSD Therapy,Hunter House, 1994).

  7. Yates, J. Jung on Death and Immortality. Princeton University Press, 2000.

  8. Campbell, Joseph. The Hero’s Journey. Harper Collins, 1990.

  9. Carhart-Harris, et al (2014). The entropic brain: a theory of conscious states informed by neuroimaging research with psychedelic drugs. Frontiers in Human Neuroscience. Volume 8, page 20.https://doi.org/10.3389/fnhum.2014.00020

  10. Carhart-Harris, RL, et al (2016). Neural correlates of the LSD experience revealed by multimodal neuroimaging. Proceedings of the National Academy of Sciences Apr 2016, 113 (17) 4853-4858; DOI: 10.1073/pnas.1518377113 

  11. Lebedev, A. V., Lövdén, M., Rosenthal, G., Feilding, A., Nutt, D. J., & Carhart-Harris, R. L. (2015). Finding the self by losing the self: Neural correlates of ego-dissolution under psilocybin.Human brain mapping,36(8), 3137–3153.https://doi.org/10.1002/hbm.22833

  12. Mason, N.L., Kuypers, K.P.C., Müller, F.et al.Me, myself, bye: regional alterations in glutamate and the experience of ego dissolution with psilocybin. 45,2003–2011 (2020).https://doi.org/10.1038/s41386-020-0718-8

  13. Amft M, Bzdok D, Laird AR, Fox PT, Schilbach L, Eickhoff SB. Definition and characterization of an extended social-affective default network. Brain Struct Funct. 2015 Mar; 220(2):1031-49.  https://dx.doi.org/10.1007/s00429-013-0698-0 

  14. Tan, et al. Human electrocorticography reveals a common neurocognitive pathway for mentalizing about the self and others (2021). Nature Portfolio: In Reivew. doi:21203/rs.3.rs-257986/v1

  15. Tagliazucchi, et al. Increased Global Functional Connectivity Correlates with LSD-Induced Ego Dissolution (2016). Current BiologyVolume 26, ISSUE 8, P1043-1050.  https://dx.doi.org/10.1016/j.cub.2016.02.010 


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