Entrevista com Milan Scheidegger
Traduzido por Joao Cardoso, editado por Joana Miranda
Christoph Benner: Milan, o tema central do seu trabalho é a psicoterapia transformativa. Assemelha-se um pouco a quando dizemos “mel doce” ou “bola redonda” – uma reiteração daquilo que já é. O que quero dizer é: toda a psicoterapia por si só não é já transformativa? Porquê esse ênfase ?
Milan Scheidegger: Você está certo, o objetivo de toda a terapia psiquiátrica é a transformação de um estado de saúde mal-adaptado num adaptativo. No entanto, ao contrário de uma terapia baseada na substituição clássica – pensando, por exemplo, no uso de antidepressivos para substituir a serotonina cerebral em pacientes deprimidos – a psicoterapia transformativa representa uma opção terapêutica inovadora e promissora. Com curta, mas profunda alteração da consciência, induzida por substâncias psicadélicas, os pacientes têm maior probabilidade de mudar e manter um estado de saúde adaptativo. Enquanto a terapia baseada na substituição visa tratar principalmente os sintomas das doenças, a terapia transformativa tem como alvo a dinâmica causal subjacente a uma doença específica. A decisão clínica sobre qual dessas opções terapêuticas se adapta melhor a um paciente precisa de ser baseada numa avaliação cuidadosa, tendo em conta o risco-benefício.
A sua resposta levanta imediatamente a questão de se a terapia baseada na substituição e a transformação cognitiva podem ser separadas de forma tão clara. Por exemplo, sabe-se que pacientes deprimidos apresentam menor densidade sináptica em diversas regiões cerebrais. A ketamina e a ayahuasca são ambas conhecidas por aumentar a sinaptogénese. Estas substâncias poderiam, portanto, ser terapêuticas por si só , já que ambas substituem o défice neuronal e transformam a consciência, certo?
Olhando para a história da investigação psiquiátrica, vemos muitas transições entre os modelos de doenças de base biológica e psicológica. Isso reflete a complexidade do problema: compreender a interface entre a mente e o cérebro. Eu vejo a psicoterapia transformativa como uma forma holística de tratar doenças mentais. A terapia baseada na substituição representa o outro lado da moeda, ou seja, a descrição de uma doença por meio de um processo cerebral errado, geralmente localizado. Não acho que faça sentido distinguir mente e cérebro e tratá-los como entidades separadas, porque ambos dependem um do outro. E as substâncias psicadélicas são ferramentas epistemológicas interessantes para explorar essas interfaces: tanto a ketamina quanto a ayahuasca iniciam certos eventos celulares que eventualmente levam a profundas alterações na consciência. Como isso acontece exatamente ainda não foi esclarecido.
Mencionou a demanda holística por trás da psicoterapia transformativa. Como tal, tenta fazer a ponte entre o conhecimento tradicional das tribos indígenas e as ciências naturais modernas. Por onde inicia essa tarefa hercúlea ?
A própria ideia de reconciliar essas duas visões do mundo diferentes origina-se das minhas viagens etnobotânicas pela América do Sul e pelo México, onde explorei métodos indígenas tradicionais de cura. Como médico, estou genuinamente interessado em reduzir o sofrimento humano e observei que vários métodos de indução de estados alterados de consciência apresentam um potencial terapêutico promissor. Através do estudo dos estados alterados, podemos não só explorar a questão de como o sofrimento mental surge, mas também como ele pode ser resolvido através da aquisição de capacidades para navegar por diferentes estados de consciência de uma forma mais flexível e adaptativa – tanto individualmente como a nível coletivo…
… Um termo importante que também usa nos seus ensaios é ecologia profunda, não é?
Sim, a ecologia profunda muda o nosso pensamento sobre as origens das doenças. As perturbações não podem ser reduzidas a um único processo dentro do corpo humano, mas resultam de dinâmicas relacionais complexas e mal adaptativas entre o sujeito e o seu ambiente. Cada processo neste ecossistema, desde as interações metabólicas até ao nível de consciência do fenómeno, desempenha um papel importante. As doenças ocorrem quando este ecossistema fica desequilibrado.
A prática clínica beneficiaria muito ao incorporar esta visão integrativa, e o uso de compostos psicadélicos seria um recurso complementar. Pense num paciente deprimido que recebe psilocibina num ambiente controlado e seguro. A ingestão deste medicamento aprofundaria a sua sensibilidade quanto aos processos introspetivos que, de uma forma mal adaptativa, foram influenciados ao longo do curso da doença. Isso, por sua vez, também aumenta a probabilidade de uma mudança adaptativa nas atitudes e comportamentos.
O pensamento ecológico profundo é parte integrante das culturas arcaicas e das visões do mundo indígena, onde a sensibilidade para os desequilíbrios no mundo natural é a chave para um tratamento eficaz. Mas também se pode tornar um recurso valioso para a medicina e ciência ocidentais contemporâneas, para que o seu foco não se limite apenas a reparar falhas isoladas na biomecânica do corpo por meio de tecnologias sofisticadas. Portanto, acho que o uso medicinal de substâncias psicadélicas pode abrir o caminho para novos paradigmas de tratamento, porque estas aumentam a metaconsciência ao nível de ecologia profunda.
Concordo prontamente em utilizar este conhecimento para fins médicos. Mas se se for a pensar apenas na questão bem profunda acerca da interação entre mente e cérebro, as respostas bastante divergentes de um curandeiro peruano e de um neurocientista suíço revelam novamente um dilema, não acha?
Pode parecer certo à primeira vista. As abordagens dualísticas do problema da mente e do cérebro originaram-se do famoso filósofo francês René Descartes e influenciaram fortemente o pensamento ocidental. Em contraste, o ponto de vista das tribos indígenas da América do Sul é completamente diferente e enraizado em noções animistas ou pan-psíquicas do cosmos, em que tudo é dotado de alma. Se voltarmos de novo à ecologia profunda, mente e matéria não aparecem mais como entidades distintas, mas ambas são partes do mesmo ecossistema, assim como tudo o que surge neste mundo. Tendo isso em mente, a separação dualística parece nada mais que um artefacto, um erro conceptual da nossa linguagem, dependendo do ponto de vista que se a adota para resolver o paradoxo: se algo aparece como mente ou como matéria depende largamente da nossa perspetiva.
Atribui um significado verdadeiro e conhecimento de conteúdo válido às experiências psicadélicas? Novamente, fala sobre a natureza falaciosa da experiência subjetiva em fornecer conhecimento de conteúdo válido, mas também sobre a melhor interpretação das tribos indígenas relativamente a questões metafísicas, que certamente derivaram em parte de experiências psicadélicas.
O sentido de realidade pode ser profundamente alterado durante uma experiência psicadélica. Elevados níveis de clareza mental podem sobrepor-se à nossa capacidade de atribuição de significado, de repente tudo parece ter significado. Portanto, duvido que as experiências psicadélicas possam abrir as portas para “verdades absolutas”, anteriormente ocultas. Em vez disso, elas fornecem insights espantosos acerca da estrutura da nossa realidade quotidiana: podemos descobrir como a nossa perceção da realidade é impulsionada por avaliações e interpretações subjetivas.
Dentro da psicoterapia transformativa, tai insights podem ser úteis para pacientes que estão presos em pensamentos de tonalidade depressiva, com avaliações negativas sobre si mesmos ou sobre o seu ambiente. Remover temporariamente essas convicções tendenciosas e ampliar a perspetiva do paciente pode ser muito tranquilizador. Voltando à sua pergunta: embora a experiência psicadélica certamente inspire crenças metafísicas ou psicoespirituais sobre a natureza do mundo, duvido do seu valor, especialmente quando se tornam dogmáticas. Mas acredito na importância de uma mente aberta, e isso pode certamente ser promovido por substâncias que alteram a consciência.
Vamos clarificar um pouco o seu trabalho no laboratório: descreve-o como um esforço bioarqueológico para visualizar estados mentais com ferramentas como a fMRI (ressonância magnética funcional). Os críticos apelidam-o de missão impossível, já que muitos passos intermédios precisam de ser dados para ser capaz de atingir esse objetivo. O grau de complexidade é considerado muito elevado. O que responde a isso?
Vejo-me como um arqueólogo biológico, cavando buracos profundos no cérebro para decifrar os sinais que encontro. Essa tarefa, obviamente, tem limitações. Por exemplo, os sinais do cérebro geralmente aparecem como hieróglifos que são completamente ilegíveis para mim. Além disso, também fico preocupado quanto ao verdadeiro conteúdo informativo dos sinais que pareço ser capaz de decifrar.
Isso resume-se à questão de quanto da nossa atividade mental pode ser realmente atribuída aos processos neuronais. Talvez esses sinais se refiram a processos que não estão sequer relacionados com a experiência subjetiva. Como pode ver, há muitos problemas que eu reconheço. Eu também não acredito na ilusão de que teremos uma teoria unificada da consciência num futuro próximo.
No entanto, também vejo um grande problema no desenvolvimento atual no campo das ciências naturais, há uma tendência para a formação de subdisciplinas com pouco diálogo entre elas. O pensamento transdisciplinar pode evitar que caiamos nas armadilhas de perspetivas epistemológicas limitadas, como a visualização de processos mentais pela metodologia da neuroimagiologia. Adotar diferentes perspetivas e pontos de vista ajudar-nos-á a entender o nosso cérebro, peça por peça.
E o que gostaria pessoalmente de descobrir como arqueologista biológico?
Como estou muito interessado na neurobiologia do self , gostaria de identificar os processos cerebrais que estão associados à manutenção e à dissolução do self . Isso poderia dar-nos uma compreensão mais profunda de como as substâncias psicadélicas ou a meditação exercem um impacto transformador. Isso também inclui estados de autotranscendência, nos quais a pessoa se sente profundamente conectada com os outros seres humanos, com o meio ambiente e com todo o ecossistema.
Na nossa cultura, as substâncias psicadélicas ainda sofrem de estigma . Como seria possível integrar estados alterados de consciência na nossa cultura, talvez rumo a algum tipo de espiritualidade secular, como proposto por Thomas Metzinger?
Em primeiro lugar, acredito que a imagem negativa das substâncias psicadélicas na nossa cultura se deve, em grande medida, ao zeitgeist (sinal dos tempos) actual, no qual temos total medo de perder o controlo das nossas vidas excessivamente planeadas. Em comparação com as culturas indígenas, não temos espaços seguros e culturalmente aceites para abrir mão do controlo da consciência e explorar camadas mais profundas a por meio das substâncias psicadélicas. Idealmente, esses espaços devem ser livres de manipulação religiosa ou doutrinária, por conseguinte enfatizaria o aspeto secular que mencionou. É principalmente responsabilidade do indivíduo qual o significado atribuído a essas experiências. Como parte desse processo, a abertura e a curiosidade parecem ser mais apropriadas do que interpretações ideológicas ou psicoespirituais acríticas.
Uma experiência psicadélica também inclui a disposição de se render a conteúdos de pensamentos negativos e emoções difíceis que podem surgir no decorrer de tal sessão. Uma atitude de abertura e aceitação para sentir todo o espectro de emoções, em vez de suprimir as emoções negativas, pode aumentar o bem-estar psicológico a longo prazo.
Finalmente, acredito que um uso cuidadoso e inteligente do potencial transformador dos estados alterados de consciência poderia não apenas melhorar a prática médica, mas também a nossa convivência cultural como seres humanos.
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