Perspective
Consciousness Research Philosophy & Consciousness Psychology


Compreender as raízes corporais da experiência consciente

Traduzido por João Cardoso, editado por Joana Miranda

Fundamentalmente, embora nem todos os seres humanos venham a ter a experiência da gravidez ou de carregar um bebé, a experiência de ser carregado e crescer dentro do corpo de outra pessoa é universal.

O “Eu” relacionado com o mundo

Imagine que está a caminhar sobre areia quente, num dia solarengo de Verão, de mãos dadas com o/a seu/sua companheiro/a. Ao mesmo tempo que perceciona este ambiente, o seu cérebro recebe e necessita de integrar uma corrente de informações sensoriais provenientes tanto do exterior como do interior do seu corpo: o calor da areia, o brilho da luz do sol, o cheiro salgado do ar, o som do coração a bater no seu peito, o calor da pele do/a seu/sua companheiro/a a tocar-lhe na mão.

Normalmente experimentamos um “eu real” que está ligado ao corpo e o qual está no centro de todas as nossas experiências sensoriais, emoções, memórias e pensamentos. Este “eu” ou “mim” está de certa forma sempre lá, mesmo que apenas em segundo plano – de modo transparente, por assim dizer; e é sentido como sendo distinto do mundo e de outras pessoas (digamos, a areia e o/a seu/sua companheiro/a).

Esta sensação de ser um “eu real” conectado a um mundo real “lá fora” faz-nos sentir presentes e imersos no fluxo da nossa vida quotidiana. Mas como é que isto funciona exatamente?

Num artigo seminal intitulado “Whatever next? Predictive brains, situated agents, and the future of cognitive science” [“O que se segue? Cérebros preditivos, agentes situados, e o futuro da ciência cognitiva”], Andy Clark1 propõe que a função do cérebro é prever qualquer informação que venha em seguida, com base na informação anteriormente percecionada. Ao invés de ser uma esponja passiva que recolhe informação de dentro e de fora do nosso corpo, o cérebro antecipa ativamente o mundo pela ótica das experiências passadas. O que quer que tenhamos percecionado  e experienciado antes deixa vestígios, por assim dizer, nos nossos sistemas nervoso e de perceção. O cérebro utiliza estes “vestígios” predominantemente para detetar perigo. É por isso que é tão difícil esquecer acontecimentos negativos: o cérebro quer manter-nos longe de problemas. Informações inofensivas, como a cor da maçaneta da porta do meu hotel, serão provavelmente tratadas como enfadonhas e apagadas da memória. No entanto, a cor do casaco do ladrão que me atacou na rua fica comigo. Esta é uma compreensão importante sublinhada por Clark e outros investigadores como Karl Friston2 e Jakob Hohwy.3

A perceção é para a sobrevivência aqui e agora

Vejamos mais de perto a influente expressão “whatever next” (“venha o que vier”). De facto, o que realmente importa para a nossa sobrevivência é perceber corretamente não só o que acontece a seguir, mas também o que acontece aqui, ou seja, perto do meu corpo. Tomemos o seguinte exemplo.

Suponha que estou a tomar um café numa esplanada numa ilha grega (ah, bem – é-me permitido sonhar, creio, uma vez que as esplanadas estão atualmente encerradas no meu país). Mas, imaginemos a situação: bebo um gole e de seguida pretendo admirar as nuvens acima, no entanto, enquanto oriento a minha atenção para o céu, vejo uma aranha sobre a mesa perto da minha mão. De repente, a perceção do que está ao lado da minha mão é de alta prioridade . Temporalmente falando, tanto a perceção do céu como a perceção da aranha vêm “a seguir”, ou seja, depois de beber café. Contudo, a perceção da aranha ao lado da minha mão coloca o meu sistema de defesa em alerta vermelho. Neste momento já não quero saber da beleza do céu, nem do sabor do meu café. Agora, todas as minhas perceções, pensamentos e emoções estão agrupadas em torno de um único facto importante: a aranha próxima da minha mão, e de como escapar em segurança.

Porque é que esta observação é importante?

É importante porque filósofos e cientistas de todas as disciplinas e tradições se têm concentrado principalmente na visão e perceção distal: eu vejo o mundo/uma maçã/um tomate vermelho “acolá”. Na realidade, porém, as nossas perceções são de natureza proximal e multissensorial.4 Percebemos constantemente o mundo e o que está próximo do nosso corpo, por exemplo, através da nossa pele, ou por intermédio do olfato. Todavia, embora estes sentidos “modestos” nos forneçam a informação mais importante acerca da nossa sobrevivência, tendemos a negligenciá-los, a rejeitá-los, ou a tomá-los como um dado adquirido.

Normalmente apercebemo-nos da importância das coisas apenas quando as perdemos. Por exemplo, com a atual crise de saúde provocada pelo vírus COVID-19, muitos de nós perderam temporariamente o olfato. As pessoas começam a aperceber-se da importância deste sentido proximal para o seu sentido de si próprio e para o seu sentido de presença no mundo.5

A experiência tátil como um fundo experiencial transparente

Contraditoriamente, precisamente porque os sentidos proximais como o tato e o olfato estão tão perto ou “próximos” do nosso corpo, geralmente subestimamos a sua importância para nós. Entre estes sentidos proximais, que são combinados para formar um fundo experiencial quase transparente, as experiências táteis têm um estatuto especial na orquestração das nossas vidas.18 Consigo vislumbrar pelo menos duas grandes razões para tal.

Em primeiro lugar, o toque é mediado pela pele, o órgão mais antigo e mais amplo em termos de tamanho e função.6,7 Isto significa que a forma mais primitiva de conhecer e percecionar o mundo à nossa volta é através do toque. Isto dá-nos o sentido mais fundamental de presença, de realidade. Recordemos o caso famoso de São Tomé: de modo a acreditar que uma ferida era real no corpo de outro, sentiu a necessidade de a tocar. Vê-la por si só não era o suficiente.

A pele também medeia a fronteira entre o eu e o mundo exterior. Ao mesmo tempo, distingue-nos e relaciona-nos com a realidade “lá fora”. As experiências táteis têm o que o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty apelidou de inevitável dualidade “touchant/touché”, ou da dupla sensação: posso ver alguém sem ser visto de volta, mas não posso tocar num objeto ou numa pessoa sem ser tocado de volta. Inevitavelmente, ao estar de mãos dadas com o meu companheiro, recebo informação não só acerca da minha mão, mas também acerca da dele (a  pele dele é quente e a minha pele é fria, por exemplo). Esta incontornável dualidade encorajou os investigadores a olhar para a pele como sendo um órgão relacional por excelência.8

A nossa perceção começa dentro do corpo de outrem

Em segundo e importante lugar, o toque desempenha um papel fundamental na exploração e no vínculo social, que confere um sentido de proximidade e de pertença.

Um aspeto importante, mas ignorado, do debate atual acerca da natureza da perceção é que as nossas experiências percetivas mais primitivas emergem no interior do corpo de outra pessoa. Por outras palavras, a incorporação mais primitiva é uma incorporação partilhada, ou co-incorporação.9 Fundamentalmente, embora nem todos os seres humanos venham a ter a experiência da gravidez ou de carregar um bebé, a experiência de ser carregado e crescer dentro do corpo de outra pessoa é universal.

Isto significa que as nossas experiências mais primitivas podem ser experiências fundamentalmente partilhadas.10,11,12,13 Com efeito, muito antes de nos cruzarmos com as mentes de outras pessoas, encontramos literalmente os seus corpos – e dependemos deles para sobreviver. Lembre-se, para o cérebro, a sobrevivência é fulcral. Os organismos vivos como nós têm um impulso incontornável para viver e potencialmente reproduzir-se. Os seres humanos vêm ao mundo dentro do corpo de outrem e inicialmente permanecem dependentes da proximidade física e do afeto de um cuidador para a sua sobrevivência e felicidade.

Entre corpos

A constatação de que os seres humanos vêm ao mundo no interior do corpo de outro pode ter duas implicações importantes para as questões cruciais que animam os debates sobre a natureza das experiências percetivas, da consciência e do ato de autoconsciencializar-se.14

Primeiro, um sistema dinâmico e complexo como o corpo humano precisa de ser capaz de fazer um jogo duplo a fim de sobreviver e potencialmente reproduzir-se. Por um lado, tem de manter com sucesso estados sensoriais dentro de certos limites fisiológicos: se ficarmos demasiado frios ou demasiado quentes durante demasiado tempo, morreremos. Por outro lado, o corpo tem de alterar estes estados de forma flexível, a fim de se adaptar a um ambiente em constante mudança.15

Se olharmos para o corpo humano através desta perspetiva dinâmica, torna-se óbvio que o que acontece entre o organismo e o seu ambiente – as fronteiras – desempenha um papel preponderante para garantir que este jogo é bem sucedido e suficientemente flexível para manter o organismo vivo. O trabalho futuro sobre perceção e consciência precisa assim de definir a conceção fundamental de “fronteira” ou “entre”: por outras palavras, o processo de trocas entre dois estados ou dois organismos.

A noção de um “Markov blanket” (cobertor/ manto de Markov) tem sido defendida recentemente como um modo promissor de conceptualizar uma fronteira mediando as interações entre um sistema e o seu ambiente.16 Um “Markov blanket” pode ser descrito grosso modo como uma fronteira estatística que separa dois conjuntos de estados. Um exemplo importante  é a membrana celular que separa a dinâmica intracelular e extracelular. A fronteira não só separa o sistema do seu ambiente, mas também relaciona intimamente o sistema com o seu ambiente.

As raízes corporais da consciência

Uma segunda implicação central, resultante do nosso surgimento  em corpo, diz respeito à própria consciência, e à própria definição do termo minimal self (Ciaunica, a publicar). As abordagens anteriores trataram desta questão tentando encontrar a base elementar do minimal self.14,17 Uma outra alternativa é centrar-se na forma como a individualidade e as experiências conscientes emergem e como de forma dinâmica se desenvolvem ao longo da vida. Usando uma metáfora, “mínimo” (minimal), neste sentido, referir-se-ia à semente que contém toda a informação latente sobre a futura árvore, e não à estrutura e forma esquematizada e abstrata de uma árvore adulta madura.

Além disso, se olharmos para a forma como a “árvore humana” desabrocha do solo (por assim dizer) no útero, então simplesmente não poderemos ignorar as suas raízes corporais e relacionais.

Da mesma forma que não se pode compreender o que é uma árvore e como funciona olhando apenas para os seus componentes visíveis – ramos, folhas, tronco – e ignorando as suas raízes invisíveis, não se poderá compreender a nossa vida experiencial consciente sem considerar a sua base invisível: as suas raízes corporais partilhadas.

Isenção de responsabilidade: este post do blog foi traduzido e editado por voluntários. Os contribuidores não representam a MIND Foundation. Se notar algum erro ou inconsistência, por favor informe-nos – agradecemos qualquer sugestão que possa melhorar o nosso trabalho (mail to: [email protected]). Se deseja ajudar no processo de tradução, entre em contacto connosco para se juntar ao. MIND Blog Translation Group!

Referências Bibliográficas

  1. Clark A. Whatever next? Predictive brains, situated agents, and the future of cognitive science. Behav Brain Sci. 2013;36(3):181–204.
  2. Friston K. A theory of cortical responses. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2005;360(1456):815–36.
  3. Hohwy J. The predictive mind. London, England: Oxford University Press; 2013.
  4. Faivre N, Arzi A, Lunghi C, Salomon R. Consciousness is more than meets the eye: a call for a multisensory study of subjective experience. Neurosci Conscious [Internet]. 2017;2017(1). Available from: dx.doi.org/10.1093/nc/nix003
  5. Barwich AS. Smellosophy: What the nose tells the mind. Harvard University Press; 2020.
  6. Field T. Touch. London, England: MIT Press; 2001.
  7. Gallace A, Spence C. The science of interpersonal touch: an overview. Neurosci Biobehav Rev. 2010;34(2):246–59.
  8. Ratcliffe M. Touch and the sense of reality. In: Radman Z, editor. The Hand, an Organ of the Mind. The MIT Press; 2013.
  9. Ciaunica A, Constant A, Preissl H, Fotopoulou A. The first prior: From co-embodiment to co-homeostasis in early life [Internet]. PsyArXiv. 2021. Available from:http://dx.doi.org/10.31234/osf.io/twubr
  10. Ciaunica A. Basic Forms of Pre-Reflective Self-Consciousness: a Developmental Perspective. In: Miguens S, Preyer G, Morando C, editors. Pre-Reflective Consciousness. Routledge; 2016.
  11. Ciaunica, A. (2017). ‘The Meeting of Bodies: Basic Forms of Shared Experiences, Topoi, an International Journal of Philosophy. doi.org/10.1007/s11245-017-9500-x
  12. Ciaunica A, Fotopoulou A. The touched self: Psychological and philosophical perspectives on proximal intersubjectivity and the self. In: Embodiment, Enaction, and Culture. The MIT Press; 2017.
  13. Ciaunica A, Crucianelli L. Minimal Self-Consciousness from within – a Developmental Perspective. Journal of Consciousness Studie. 2019;26(3–4):207-226(20).
  14. Blanke O, Metzinger T. Full-body illusions and minimal phenomenal selfhood. Trends Cogn Sci. 2009;13(1):7–13.
  15. Seth AK, Tsakiris M. Being a beast machine: The somatic basis of selfhood. Trends Cogn Sci. 2018;22(11):969–81.
  16. Ramstead MJD, Kirchhoff MD, Constant A, Friston KJ. Multiscale integration: beyond internalism and externalism. Synthese [Internet]. 2019; Available from:http://dx.doi.org/10.1007/s11229-019-02115-x
  17. Zahavi D. Subjectivity and selfhood: Investigating the first-person perspective. The MIT Press; 2005.
  18. Ciaunica A, Petreca B, Fotopoulou A, Roepstorff A. Whatever Next and Close to my Self – The Transparent Senses and the ‘Second Skin’: Implications for the Case of Depersonalisation 2021. doi:10.31234/osf.io/u8ky6.

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