Que sabemos e quais podem ser os riscos?
Traduzido por Carlos Miguel da Silva Monteiro, editado por Rodrigo Fonseca
AVISO: ANTES DE ALTERAR SEUS ESQUEMAS DE MEDICAÇÃO ANTIDEPRESSIVA, OS PACIENTES DEVEM SEMPRE CONSULTAR O SEU MÉDICO OU PSIQUIATRA PARA EVITAR A SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA E EVENTUAL RECAÍDA.
Em recentes ensaios clínicos com psicodélicos foi solicitado aos participantes que interrompessem a tomada s antidepressivos antes de se inscreverem, ou foram rejeitados os pacientes que estavam tomando antidepressivos. Da mesma forma, alguns centros de retiro psicodélico permitem apenas participantes que não estejam a tomar antidepressivos.
Como os psicodélicos mostraram uma promessa inicial para a depressão de difícil tratamento[1],[2],uma preocupação frequentemente levantada está relacionada com possíveis riscos da interação entre medicamentos antidepressivos e psicodélicos. Este artigo tem como objetivo investigar este problema e fornecer algumas respostas preliminares.
Ospsicodélicos clássicos são definidos pela sua capacidade de atuar como agonistas dos recetores da serotonina, particularmente nos recetores da serotonina 2A (5HT2AR[3],[4]). Consequentemente, muitos dos efeitos subjetivos e biológicos dos psicodélicos clássicos são bloqueados após a administração de antagonistas 5HT2AR, como a cetanserina[5],[6]. Os psicodélicos clássicos demonstraram ser relativamente seguros no contexto de ensaios clínicos, sendo que os efeitos colaterais mais observados são dores de cabeça, pequenas elevações na pressão arterial e ansiedade aguda, nenhum dos quais comumente requer intervenção médica2,[7],[8]. Embora os mecanismos exatos de ação e a farmacocinética dessas moléculas não sejam completamente compreendidos, duas questões particulares foram levantadas quando se trata da sua interação com drogas antidepressivas: a chamada síndrome serotoninérgica e a diminuição dos efeitos psicodélicos subjetivos.
A síndrome serotoninérgica é uma reação adversa aos medicamentos envolvidos no aumento da biodisponibilidade da serotonina, potencialmente letal,e que tem maior probabilidade de ocorrer quando dois compostos capazes de aumentar a neurotransmissão da serotonina são administrados simultaneamente. No entanto, também é descrita a sua ocorrência após a administração de apenas um desses compostos 9. A serotonina é produzida a partir do aminoácido L-triptofano e os seus efeitos são regulados por mecanismos de recaptação, ciclos de feedback e enzimas como a monoamina oxidase. A serotonina atua no sistema nervoso a nível central e periférico. No sistema nervoso central, desempenha um papel importante na consciência, no comportamento, no tônus muscular, na temperatura corporal e na dor. Na periferia, regula o tônus vascular, a nocicepção (perceção da dor) e a atividade gástrica10. Os efeitos da serotonina são mediados por 7 tipos de recetores (de 5-HT1 a 5-HT7) e pelo menos 14 subtipos3.
A síndrome da serotonina foi relatada em todas as faixas etárias, e estima-se que ocorra em aproximadamente 15% das pessoas com overdose de toxicidade relativa de inibidores seletivos da recaptação da serotonina (IRSS). No entanto, é difícil obter uma taxa precisa da incidência dessa síndrome, pois os seus sintomas são pouco específicos e não há conhecimento dos médicos sobre essa condição. Uma pesquisa constatou que 85% dos médicos desconheciam a existência dessa toxicidade.11
A gravidade da síndrome da serotonina pode variar de leve a fatal. Seus sintomas são frequentemente descritos como uma tríade clínica: anormalidades neuromusculares (como tremor ou hipertonia muscular que levam à hipertermia), hiperatividade do sistema nervoso autónomo (levando a aumento da frequência cardíaca e diarreia) e alterações no estado mental (como agitação ou delírio; ver figura 1 para uma visão geral).9
Figura 1: Espectro de sintomas clínicos: As manifestações da síndrome serotoninérgica variam de leves a potencialmente fatais. As setas verticais sugerem o ponto aproximado em que os achados clínicos aparecem inicialmente no espectro da doença, embora nem todas as características se apresentem sempre num único paciente com síndrome serotoninérgica. Os sinais graves podem mascarar outros achados clínicos. Por exemplo, a hipertonia muscular pode superar o tremor e a hiperreflexia 9.
A fisiopatologia precisa da síndrome serotoninérgica não é completamente compreendida, mas parece resultar de um excesso na neurotransmissão da serotonina. Não está ligada a um único recetor de serotonina, embora seja sugerido que os recetores 5-HT2A contribuam substancialmente para a doença. Outros recetores, como o 5-HT1A, também parecem contribuir para isso quando as concentrações de serotonina atingem um ponto em que todos os outros subtipos de recetores estão saturados (ver figura 2 para uma visualização) 11. Outros neurotransmissores, como a norepinefrina, também podem desempenhar um papel importante nesta síndrome: por exemplo, um aumento na concentração de norepinefrina no SNC durante a síndrome serotoninérgica correlaciona-se com sintomas mais graves 11. A dopamina também pode estar envolvida, uma vez que um aumento na neurotransmissão da dopamina pode indiretamente desencadear a libertação de serotonina.12,14
Figura 2: Mecanismos da Síndrome serotoninérgica: 1) Doses aumentadas de L-triptofano irão aumentar proporcionalmente a formação de 5-hidroxitriptamina (5-HT ou serotonina). 2) Anfetaminas e outras drogas aumentam a libertação de serotonina armazenada. 3) A inibição do metabolismo da serotonina por inibidores da monoamina oxidase (MAO) aumentará a concentração pré-sináptica de 5-HT. 4) A diminuição do transporte de 5-HT para o nervo pré-sináptico por bloqueadores de captação aumenta a concentração sináptica de 5-HT. 5) Os agonistas diretos da serotonina podem estimular os receptores 5-HT pós-sinápticos. 6) O lítio aumenta as respostas do receptor pós-sináptico. Dourado = absorção de 5-HT bloqueadora da droga; círculos sombreados = 5-HT; estrela = agonista 5-HT de ação direta.11
Na maioria dos países, a prescrição de mais de um medicamento serotoninérgico de uma vez é contraindicada, pois isso pode levar à síndrome serotoninérgica. Conforme detalhado na Tabela 1 abaixo, todo medicamento que aumenta a neurotransmissão da serotonina pode estar envolvido em sua patogênese. A maioria dos casos envolve medicamentos ISRS ou inibidores da monoamina oxidase (IMAO), tomados simultaneamente com pelo menos um outro medicamento que aumenta os níveis de serotonina. A combinação de drogas que aumentam diferencialmente a neurotransmissão da serotonina tem maior probabilidade de induzir a síndrome serotoninérgica grave.15
Tabela 1: Medicamentos associados à síndromeserotoninérgica.9
Não há dados empíricos sobre a interação entre psicodélicos e antidepressivos e se isso aumentaria o risco da síndrome serotoninérgica. No entanto, é bem conhecido que os psicodélicos têm propriedades agonistas do receptor 5-HT2A, aumentando, portanto, a neurotransmissão neste receptor. Assim, do ponto de vista farmacológico, parece provável que sua co-administração com antidepressivos serotonérgicos poderia induzir a síndrome serotoninérgica. Consequentemente, pode ser perigoso misturar psicodélicos com qualquer tipo de medicamento que aumente a neurotransmissão serotonérgica.
Além disso, é importante notar que vários psicodélicos, como LSD e 5-Meo-DMT, são metabolizados pelo CYP2D616,17 uma enzima hepática que está envolvida na metabolização de muitas substâncias. Ao mesmo tempo, os SSRIs são um substrato e um inibidor dessa enzima18. Isso significa que o CYP2D6 está menos disponível para metabolizar psicodélicos e ISRS, resultando em um aumento nas concentrações sanguíneas de substâncias serotonérgicas, que está associado à indução da síndrome serotoninérgica.11
Por esse motivo, é recomendado reduzir gradualmente a medicação antidepressiva antes de iniciar qualquer terapia ou uso psicodélico. Além disso, uma vez que a administração de agentes serotoninérgicos dentro de cinco semanas após a descontinuação dos ISRS pode induzir a síndrome serotoninérgica11, parece ser mais seguro esperar pelo menos cinco semanas antes de usar qualquer composto psicodélico.
Além do risco da síndrome serotoninérgica, os efeitos subjetivos da experiência psicodélica podem ser alterados se os psicodélicos forem combinados com antidepressivos. Evidências informais sugerem que o uso agudo de ISRS, assim como o uso crônico de antidepressivos tricíclicos, podem alterar os efeitos subjetivos dos psicodélicos. Em relação aos antidepressivos tricíclicos, essa observação pode estar relacionada à sensibilização do recetor pós-sináptico e ao aumento dos níveis de dopamina, que indiretamente levam a um aumento da neurotransmissão da serotonina.12,13
Por outro lado, a administração crónica de SSRIs ou IMAO demonstrou diminuir os efeitos subjetivos dos psicodélicos. Com relação aos ISRS, uma possível razão para isso poderia ser que a administração crônica de ISRS causa a regulação negativa dos recetores 5-HT2. Isso, por sua vez, pode tornar alguém menos sensível às substâncias que afetam esses recetores, como os psicodélicos. Portanto, essa diminuição nos efeitos subjetivos pode resultar da regulação negativa do receptor 5-HT2A. Com relação aos IMAOs, a administração crônica demonstrou desencadear a dessensibilização do recetor de serotonina, o que poderia explicar a diminuição observada nos efeitos psicodélicos subjetivos.19,20,21
Os mecanismos precisos subjacentes à modulação da experiência psicodélica por antidepressivos ainda não são claros, e mais pesquisas devem ser conduzidas para obter um melhor entendimento. Além disso, o risco da síndrome serotoninérgica não pode ser ignorado devido à observação de efeitos subjetivos embotados dos psicodélicos após a regulação negativa do receptor 5-HT2A. Especificamente, pode ser o caso de que a síndrome serotoninérgica dependa da taxa de recetores 5-HT ocupados, pelo que uma taxa mais alta de recetores ocupados poderia ser alcançada mais facilmente quando o número global de recetores é reduzido. Além disso, várias diferenças s individuais, como variações genéticas nas enzimas responsáveis pelo metabolismo da droga, também podem desempenhar um papel na ocorrência da síndromeserotoninérgica.22
É impossível afirmar com certeza qual é a relação entre a síndrome serotoninérgica e a farmacologia dos psicodélicos. O conhecimento atual é insuficiente para formular uma avaliação precisa do risco, ou um modelo de modulação dos efeitos subjetivos e fisiológicos decorrentes da combinação de antidepressivos e substâncias psicodélicas.
Não houve muito progresso na elucidação da fisiopatologia da síndrome serotoninérgica nos últimos anos. No entanto, como estamos obtendo uma visão mais clara da farmacologia dos psicodélicos, podemos desenvolver recomendações mais precisas para o trabalho clínico no futuro.
No entanto, um exame atento dos efeitos dos antidepressivos comuns e das drogaspsicodélicas na neurotransmissão da serotonina sugere que essa combinação é arriscada do ponto de vista farmacológico e que seria muito improvável que tivesse efeitos clinicamente benéficos. Consequentemente, recomenda-se cautela ao considerar a ingestão de umasubstância psicodélica durante a medicação antidepressiva.
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